segunda-feira, 24 de setembro de 2012

Vincere+Arquitetura da Destruição+L'Etoile de Mer


Em pleno anos 20 do século XX, numa Europa assolada pela primeira guerra, a chamada Grande Guerra ou a Guerra da Guerras, e na iminência de uma segunda guerra mundial deste mesmo século, o surrealismo propõe, dentre inúmeros movimentos de vanguarda, mais um novo insólito olhar sobre o mundo moderno.
De forma a restaurar os poderes da imaginação, castrados pela hegemonia do utilitarismo vigente e pelos valores da sociedade burguesa, tais como pátria, família, religião, trabalho e honra, e perpassar a contradição entre objetividade e subjetividade, o movimento surrealista destinou-se à ampliação da consciência e a uma poética da alucinação através da libertação do inconsciente.
O curta-metragem L’Étoile de Mer, obra clássica do cinema surrealista dos anos 20, realizado por Man Ray no ano de 1928, compõe neste contexto uma atmosfera fluida e onírica, conseguida através de processos técnicos pouco ortodoxos, como a utilização de lentes embaçadas que configuram imagens esbatidas e fugidias.
A realidade concreta, a guerra, o culto ao belicismo eram desprezados, a postura humana negligencial, frente aos acontecimentos do indefinido contexto político entreguerras, se contrapunha ao desejo dos surrealistas de alcançar, justamente, o espaço no qual o humano pudesse se libertar de toda a repressão imposta pela razão e pelo constante controle do ego. O contraste entre o turvo e o nítido que se segue como premissa estética do curta-metragem de Man Ray parece nos prover de suficientes motivos para acreditar que se trata de uma época de extremos antagonismos.
O filme Vincere, produção franco-italiana dirigida por Marco Bellocchio, retoma este cenário a partir de um romance entre Benito Mussolini e Ida Dalser, supostamente a mãe de seu primogênito. Ida teria, nos primórdios da solidificação do partido nacional fascista, investido financeiramente com o jornal que culminou no maior colaborador com o ambicioso projeto totalitarista de Mussolini de governar a Itália. O longa-metragem evidencia, principalmente, a caracterizante estética fascista, a eclosão da propaganda, onde slogans aparecem em letras garrafais e teores panfletários invadem a tela; pensamentos estes são vinculados ao posicionamento bélico e imponente de um estado ditatorial.
Ida Dalser incorpora, talvez, um personagem de alma surrealista, caracterizado pela busca do indivíduo que procura não se anular frente as maquinações do totalitarismo. O indivíduo surrealista se ergue, essencialmente, numa posição existencial, numa forma de estar na vida que contesta tanto o racionalismo pedante quanto o espiritualismo dogmático. Neste sentido, combate todos os constrangimentos que reprimam o espírito livre do ser humano.
Os surrealistas foram, desde sempre, alvo de perseguições por parte dos diversos poderes instituídos, pouco interessados na divulgação destas propostas de Liberdade que pretendem reconciliar o indivíduo com a vida – "os regimes fascistas e sociais-fascistas prendem as ideias e as pessoas, não porque acreditem que elas na cadeia sejam menos ideias e pessoas mas por terem medo pânico delas", escreveu justamente Mário Cesariny.

Catálogo da Exposição Arte Degenerada


O documentário Arquitetura da Destruição produzido e dirigido pelo cineasta sueco Peter Cohen, no ano de 1988, percorre a construção da estética higienista pelo regime totalitarista nazista, encabeçado por Adolf Hitler, projetada através dos padrões ideais de beleza da Antiguidade Clássica, e enfatizando a grandeza das obras de arte do período.
 Logo no início do documentário, Cohen menciona que artistas frustrados eram uma constante no comando do Terceiro Reich, apesar de terem se empenhado bastante durante suas carreiras artísticas. Logo depois, apresenta-se Hitler como um aspirante arquiteto e pintor frustrado por sua não admissão na Academia de Artes de Viena, criando uma subsequente obsessão pela arte clássica, Richard Wagner e Linz, sua cidade natal.
Desconsiderando o pensamento sobre o belo durante a modernidade que se estendeu, o Nazismo subestimo u a arte moderna em geral, de forma a ignorar o desabrochar das vanguardas modernistas europeias e, com isso, dentro da lógica totalitária nazista, passou a chamá-la de arte degenerada. Durante todo o filme é possível constatar como Hitler fez com que as artes pudessem contribuir com o seu ambicioso e utópico projeto político.
Portanto, a ideologia exterminadora e megalomaníaca que permeia o período nazi-fascista é a máxima contrária dos ideais surrealistas. O Surrealismo rechaçou, em todas as instâncias imagináveis, o racionalismo bélico castrador do sujeito existencial e artisticamente livre. Assim, como no curta-metragem de Man Ray, onde o olhar se turva diante do belo não óbvio, e a perspectiva do neutro se manifesta nitidamente, o panorama da arte neste momento também se apresenta ambíguo e paradoxal.

terça-feira, 11 de setembro de 2012


No século XX as vanguardas européias propunham diferentes formas de pensar e produzir arte inspirados na velocidade e no dinamismo da produção industrial, e sobre influência de grandes transformações sociais que vinham ocorrendo desde o século anterior, como as unificações políticas nacionais, as disputas por mercados internacionais (coloniais), o socialismo e a consolidação do Estado liberal burguês.
De 1909 a 1924 o mundo viu surgir uma série de manifestos e movimentos que inovaram e revolucionaram a arte. Uma revolução que acompanhou a primeira grande crise política decorrente da nova ordem do capitalismo industrial, e que rompe de vez com a estética do século XIX.
Um destes movimentos foi o Futurismo, que surge em meio a uma convulsão política na Itália: o conflito austro-italiano. Encabeçado por Filippo Tommaso Marinetti, egípcio de ascendência italiana e de educação francesa, o Futurismo pretendia reformular as artes, rejeitando seu conceito de tradição histórica.
O primeiro manifesto futurista foi publicado no jornal parisiense Le Fígaro, no dia 20 de fevereiro de 1909. Ultrapassando as fronteiras italianas, num ímpeto de que o movimento fosse mundial e não apenas provincial, logo o Futurismo ganhou outros países e abrangeu diversos campos artísticos: teatro, performance, pintura, música etc. Ainda em 1909, Marinetti estreia no Théâtre de lÓeuvre a peça Roi Bombance, claramente inspirada no Ubu Roi e na patafísica de Alfred Jarry (1873-1907). Vale ressaltar que Jarry foi um artista anárquico, que atacava as convenções sociais de modo satírico e grotesco.
O Futurismo voltava-se contra o culto da tradição e da comercialização da arte, e louvava o militarismo patriótico e a guerra, além de expressar um forte sentimento misógino.
Em um de seus manifestos subseqüentes lia-se “velocidade e amor ao perigo”, e a instrução aos pintores de “ir às ruas, incitar a violência a partir dos teatros e introduzir o pugilato na batalha artística...” (RoseLee, 2006). Violência, combate belicoso, dinamismo, sons de artilharia e metralhadora foram os epígrafes desta forma de arte.
Marinetti chegou a ser preso junto com Benito Mussolini em 1915, por fazerem discursos intervencionistas pedindo a entrada da Itália na primeira grande guerra.
O longa-metragem Vincere (2009), produção franco-italiana dirigida por Marco Bellocchio, usa como título e tema uma canção famosa fascista chama Vincere (Vencer). É notável que em algumas sequências  o diretor utiliza a estética futurista para retratar o espírito desse tempo. Há trechos documentais, imagens de época, onde aparecem em destaque os cartazes futuristas, principalmente aqueles que serviram para propagar os ideais fascistas.
O filme trata da relação entre Benito Mussolini (Filippo Timi) e Ida Dalser (Giovanna Mezzogiorno), que depois de casada com Mussolini dá luz a um filho, Benito Albino, que foi reconhecido, e em seguida renegado pelo pai.
Eles se conhecem em Milão, quando Mussolini é ainda um enérgico jovem socialista, revelando-se um líder radical que pretende orientar o povo italiano contra a Igreja e a monarquia. Apaixonada, Ida vende tudo o que tem para financiar o Il Popolo d`Italia,  jornal que se tornaria  núcleo do futuro Partido Fascista.  
Após alistar-se no exército e partir para a Primeira Guerra Mundial, Mussolini desaparece. Ida o reencontra tempos mais tarde casado com outra mulher. Indignada, ela exige seus direitos de esposa legítima e mãe de seu filho primogênito. Perseguida pela polícia do regime fascista no intuito de destruir qualquer vestígio de seu relacionamento com o ditador, Ida acaba sendo levada à força para um manicômio onde fica trancada por mais de 11 anos, sendo torturada, humilhada e impedida de ver seu filho.
Outro movimento importante da vanguarda artística moderna foi o Dadaímos, que surge em Zurique, também em meio a Primeira Guerra Mundial, mas logo ganha alcance internacional. Os dadaístas procuravam desmistificar uma sociedade que em prol da ciência e do progresso espalhavam a destruição e a carnificina.
Revoltados com a guerra “acreditavam que a única esperança para a sociedade era destruir aqueles sistemas baseados na razão e na lógica, substituindo-os por valores ancorados na anarquia, no primitivo e no irracional” (Dempsey, 2003).
O documentário “Arquitetura da destruição” (1989), produzido e dirigido pelo cineasta sueco Peter Cohen, mostra a perseguição sofrida por artistas, e a chacina monstruosa promovida pelos nazistas com o objetivo principal de “embelezar” o mundo.
Hitler era um pintor fracassado, artista frustrado, amante do classicismo e da obra de Wagner. Em 19 de julho de 1937 promove na cidade de Munique, na Alemanha, uma exposição que marca o ápice da campanha pública do regime nazista contra a arte moderna: a mostra internacional “Entartete Kunst”, a “Arte Degenerada”.
Dentre as obras expostas (confiscadas, e algumas destruídas) estão aquelas do movimento dada, assim como obras cubistas, expressionistas, surrealistas e de todos os movimentos modernos que se contrapunham ao ideal artístico nazista que visava recuperar as formas clássicas, e enaltecer o corpo e a condição física da raça ariana, sua “pureza e beleza”. Esses ideais funcionaram como peça chave da construção de um imaginário que buscava a recuperação da raça alemã, que supostamente encontrava-se degenerada pela contaminação de elementos inferiores e nocivos.
A razão torpe desse tempo de convulsões sociais foi mote para muitos artistas. Dentre eles o pintor e fotógrafo americano, Man Ray que junto a Marcel Duchamp fundou o movimento dada nova-iorquino, e posteriormente como cineasta lançou diversos filmes surrealistas.
O primeiro foi “Le Retour à La Raison” (1923), filmado em um só dia. O título é paradoxal, pois logo o filme revela-se inteiramente sem razão. A recepção não foi positiva causando uma reação violenta por parte do público que interrompeu a projeção após um minuto.
No primeiro manifesto surrealista lançado por André Breton em 1924, o movimento é exposto como “o pensamento que é expresso na ausência de qualquer controle exercido pela razão, e alheio a todas as considerações morais e estéticas” (Dempsey, 2003). Ao estarrecimento diante da promessa não cumprida pela modernidade, e o desgosto do homem em face de seu destino, resta o elogio a loucura como forma libertadora da imaginação, “o surrealismo libertaria o inconsciente, reconciliando com o consciente, e também livraria a humanidade dos grilhões da lógica e da razão, que até então haviam reduzido unicamente à guerra e à dominação” (Dempsey, 2003).
Neste sentido, o filme de Man Ray é totalmente despreocupado com a narrativa e a linearidade. Todo em preto e branco, a cena inicial é uma sequência de imagens granuladas, com pregos soltos e outros objetos metálicos colocados diretamente sobre a película; uma cone de papel, um relógio, um carrossel, e engrenagens de máquinas. Em meio a essas imagens uma palavra: “DANCER”; e o giro do torso nu de uma mulher.
Os significados e interpretações para estas sequências são múltiplos, cumprindo o propósito de atiçar os sentidos, numa atmosfera fantástica, e nos levando a pensar que a razão do homem é algo ininteligível.

Bibliografia:
Goldberg, RoseLee. A arte da performance: do futurismo ao presente. São Paulo: Martins Fontes, 2006.
Dempsey, Amy. Estilos, escolas e movimentos. São Paulo - Cosac Naify, 2003.

sábado, 8 de setembro de 2012

Deslizante contendo moinho d’água em metais vizinhos 
“...usar permanência em vez de quadro ou pintura; pintura em vidro se torna permanência em vidro – mas permanência em vidro não significa pintura em vidro. É apenas uma maneira de se conseguir deixar de pensar que a coisa em questão é uma pintura (...) – poder-se-ia dizer uma permanência em vidro da mesma maneira como um poema em prosa ou uma escarradeira em prata” Marcel Duchamp, Duchamp du signe.



Marcel Duchamp (1882-1968) foi um pintor, escultor, e poeta francês naturalizado norte americano em 1955. Precursor da arte conceitual e criador dos ready mades que consistem no deslocamento de um objeto cotidiano em obra de arte, redefinindo os conceitos de espaço e de objeto artístico. Na arte conceitual as ideias importam mais do que o produto em si; e há uma forte crítica ao processo de produção e industrialização das obras de arte. No seu desenvolvimento a arte moderna rompe “... com todo padrão de representação que atribuía à arte a função essencial de retratar uma realidade natural ou histórica, e que até meados do século XIX introduzia seus objetos artísticos em um curioso jogo de representação em que estes como que buscavam ocultar de seus fruidores as marcas da sua própria natureza enquanto objetos de arte” [1].
Man Ray, 1917
Duchamp é também um expoente do movimento Dada. De alcance internacional, o dadaísmo representava um estilo de vida, um estado mental, onde o artista deveria destruir os valores baseados na razão e na lógica; lembrando que o fenômeno dada surgiu no pós-guerra, suscitando a indignação e a rebeldia dos artistas que viam na anarquia e no irracional uma forma de combater e rejeitar as tradições artísticas e de denunciar o absurdo e a hipocrisia nas relações humanas.
Glissière contenant un moulin à eau en métaux voisins, (Deslizante contendo moinho d’água em metais vizinhos) é uma escultura/pintura de 1913-15 em óleo, chumbo, fios de chumbo e vidro (147 x 79 cm) [2], contendo uma imagem prensada entre duas placas de vidro semicirculares, cuja moldura de metal é dividida em compartimentos onde assentam os vidros, montada numa dobradiça móvel que permite afastá-la da parede. É o primeiro estudo sobre vidro de Duchamp, que mais tarde passaria a integrar a obra “A noiva despida pelos celibatários, mesmo ou o Grande Vidro” (1913).
Duchamp teria a imaginado após visita a uma exposição de tecnologia da aviação. Inspirado nas mudanças tecnológicas e no pensamento científico da época ele cria uma série de obras que abordam o movimento das máquinas: “Moinho de café” (1911); “9 moldes málicos” (1914-15); “Triturador de chocolate” (1914); e “Roda de bicicleta” (1913) são algumas delas.





[1] “Arte e conceito em Marcel Duchamp: uma redefinição do espaço, do objeto e do sujeito artísticos” por José D’Assunção Barros em Domínios da Imagem, Londrina, ano I, n.2, maio 2008.
[2] Philadelphia Museum of Art. Philadelphia, PA, USA.