Em
pleno anos 20 do século XX, numa Europa assolada pela primeira guerra, a
chamada Grande Guerra ou a Guerra da Guerras, e na iminência de uma segunda
guerra mundial deste mesmo século, o surrealismo propõe, dentre inúmeros
movimentos de vanguarda, mais um novo insólito olhar sobre o mundo moderno.
De
forma a restaurar os poderes da imaginação, castrados pela hegemonia do
utilitarismo vigente e pelos valores da sociedade burguesa, tais como pátria,
família, religião, trabalho e honra, e perpassar a contradição entre
objetividade e subjetividade, o movimento surrealista destinou-se à ampliação
da consciência e a uma poética da alucinação através da libertação do
inconsciente.
O
curta-metragem L’Étoile de Mer, obra
clássica do cinema surrealista dos anos 20, realizado por Man Ray no ano de
1928, compõe neste contexto uma atmosfera fluida e onírica, conseguida através
de processos técnicos pouco ortodoxos, como a utilização de lentes embaçadas
que configuram imagens esbatidas e fugidias.
A
realidade concreta, a guerra, o culto ao belicismo eram desprezados, a postura
humana negligencial, frente aos acontecimentos do indefinido contexto político
entreguerras, se contrapunha ao desejo dos surrealistas de alcançar, justamente,
o espaço no qual o humano pudesse se libertar de toda a repressão imposta pela
razão e pelo constante controle do ego. O contraste entre o turvo e o nítido
que se segue como premissa estética do curta-metragem de Man Ray parece nos
prover de suficientes motivos para acreditar que se trata de uma época de
extremos antagonismos.
O
filme Vincere, produção
franco-italiana dirigida por Marco Bellocchio, retoma este cenário a partir de
um romance entre Benito Mussolini e Ida Dalser, supostamente a mãe de seu
primogênito. Ida teria, nos primórdios da solidificação do partido nacional
fascista, investido financeiramente com o jornal que culminou no maior
colaborador com o ambicioso projeto totalitarista de Mussolini de governar a
Itália. O longa-metragem evidencia, principalmente, a caracterizante estética
fascista, a eclosão da propaganda, onde slogans
aparecem em letras garrafais e teores panfletários invadem a tela;
pensamentos estes são
vinculados ao posicionamento bélico e imponente de um estado ditatorial.
Ida Dalser incorpora, talvez, um
personagem de alma surrealista, caracterizado pela busca do indivíduo que
procura não se anular frente as maquinações do totalitarismo. O indivíduo
surrealista se ergue, essencialmente, numa posição existencial, numa forma de estar na vida que contesta tanto
o racionalismo pedante quanto o espiritualismo dogmático. Neste sentido,
combate todos os constrangimentos que reprimam o espírito livre do ser humano.
Os
surrealistas foram, desde sempre, alvo de perseguições por parte dos diversos
poderes instituídos, pouco interessados na divulgação destas propostas de
Liberdade que pretendem reconciliar o indivíduo com a vida – "os regimes
fascistas e sociais-fascistas prendem as ideias e as pessoas, não porque
acreditem que elas na cadeia sejam menos ideias e pessoas mas por terem medo
pânico delas", escreveu justamente Mário Cesariny.
Catálogo da Exposição Arte Degenerada |
O documentário Arquitetura da Destruição produzido e dirigido pelo cineasta sueco
Peter Cohen, no ano de 1988, percorre a construção da estética higienista pelo
regime totalitarista nazista, encabeçado por Adolf Hitler, projetada através
dos padrões ideais de beleza da Antiguidade Clássica, e enfatizando a grandeza
das obras de arte do período.
Logo
no início do documentário, Cohen menciona que artistas frustrados eram uma
constante no comando do Terceiro Reich, apesar de terem se empenhado bastante
durante suas carreiras artísticas. Logo depois, apresenta-se Hitler como um
aspirante arquiteto e pintor frustrado por sua não admissão na Academia de
Artes de Viena, criando uma subsequente obsessão pela arte clássica, Richard
Wagner e Linz, sua cidade natal.
Desconsiderando o pensamento sobre o
belo durante a modernidade que se estendeu, o Nazismo subestimo u a arte
moderna em geral, de forma a ignorar o desabrochar das vanguardas modernistas
europeias e, com isso, dentro da
lógica totalitária nazista, passou a chamá-la de arte degenerada. Durante todo
o filme é possível constatar como Hitler fez com que as artes pudessem
contribuir com o seu ambicioso e utópico projeto político.
Portanto,
a ideologia exterminadora e megalomaníaca que permeia o período nazi-fascista é
a máxima contrária dos ideais surrealistas. O Surrealismo rechaçou, em todas as
instâncias imagináveis, o racionalismo bélico castrador do sujeito existencial
e artisticamente livre. Assim, como no curta-metragem de Man Ray, onde o olhar
se turva diante do belo não óbvio, e a perspectiva do neutro se manifesta
nitidamente, o panorama da arte neste momento também se apresenta ambíguo e
paradoxal.